quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Dois textos deste Mestre que tem a idade do meu pai...sobre a dança, sobre o diário gráfico, sobre o corpo, sobre a expressão, sobre o registo de SER




Lagoa Henriques. Portugal. 1923. Escultor. Poeta. Professor.




"A dança, como a poesia, é uma dádiva com dúvida!"

A dança é qualquer coisa que nasceu com o próprio Homem, e é uma expressão, simultaneamente, de liberdade e de alegria. É um reflexo, como diriam os nosso avós, "do que nos vai na alma". A comunicação começa e fundamenta-se entre o gesto e a palavra. Diz o povo que "o gesto é tudo" e pode-se, precisamente, num desencadear de gestos, no crescer de um ritmo de atitudes, construir uma mensagem relativamente às nossas inquietações, àquilo que nos ocupa e preocupa e, digamos até, a um universo total do mistério da existência. Ainda hoje costumo dizer ao meus alunos, precisamente, que o grande problema do Homem tem sido procurar decifrar o enigma do Universo e, no tempo presente, tentar encontrar o equilíbrio possível entre a técnica, a estética, a ética e a poética. Diria mesmo, que a dança é, realmente, a poética do gesto, a corporização que cresce nesse gesto, manifestando um discurso que oferece a quem a olha uma determinada mensagem, concreta. Eu acredito numa dança de improviso, embora o meu contacto inicial com a dança tivesse sido com o bailado clássico – "O Lago dos Cisnes". Este é um tipo de dança que eu admiro, porém, toca-me muito mais a dança moderna, porque possui outra criatividade e interioridade e é capaz de transmitir essas tais inquietações, essas dúvidas que antes mencionei. A dança, como a poesia, é uma dádiva com dúvida. Entendo perfeitamente que se pode até dançar embalado por uma música interior, a nossa própria música. Nós somos o reflexo de um mundo que nos envolve. No espaço sideral, há esse jogo das esferas – "o brilho das esferas" de que falava Antero de Quental – e é, realmente, nesse nosso planeta (na esfera terreste e na celeste), nesse universo infinito do indimensional e do inominado, que o Homem vai procurar encontrar sentidos múltiplos. É, pois, esse cruzamento de sentidos que se corporiza nas várias linguagens de expressão. A dança tem muito de desenho e se o grande Almada Negreiros afirma que "o desenho é o nosso entendimento a fixar o instante", a dança é também esse entendimento relacionando com um determinado referente. Aquilo a que os nossos antepassados chamavam o tema, o conteúdo, e hoje chamamos de significado. A dança contemporânea ultrapassa em criatividade os bailados clássicos, condicionados por uma determinada gramática, e tem a ver com esse universo de inquietações, em que existem uma filosofia e uma metafísica próprias, como existe uma poética. Quando falo dessa poética, estou a lembrar Platão e Aristóteles, a passagem do não-ser ao ser, qualquer coisa que se acrescenta ao que já existe. É aí que está o ponto alto da dança.


Intensidade artística
Os grandes bailarinos que eu vi ao vivo, aqui, foram o Jean Babilée, o Maurice Béjart e o Rudolfo Nureyev. Em Paris, assisti à estreia do bailado "Le Jeune Homme et la Mort", com argumento do Jean Cocteau, e Babilée no papel de jovem. Foi um verdadeiro espanto. Ele era uma figura notável, com quem eu tive o privilégio de falar um pouco, depois do espectáculo, porque eu já conhecia o Cocteau de uma exposição fantástica que ele fizera em Roma, na galeria do coleccionador Renato Atanasio. Nessa altura, tivemos oportunidade de trocar umas palavras. Ele nunca veio a Portugal mas coleccionava fotografias do nosso país, pois tinha a esperança de cá vir um dia. O Babilée era um artista excepcional, profundamente inteligente e com um grande respeito pelo seu próprio corpo, cultivando, portanto, uma disciplina rigorosa para estar sempre em forma. Voltei a vê-lo, noutras ocasiões. Foi sempre uma figura que me fascinou. Outra foi Isadora Duncan que, naturalmente, não conheci mas que, como se sabe, é a mulher que liberta a dança de um convencionalismo castrador. Também vi dançar Martha Graham, outra bailarina que muito admiro. Recordando Nijinsky, e o seu "Prelúdio à Sesta de um Fauno", vêm-me imediatamente à memória os baixos-relevos de Antoine Bourdelle, no Teatro dos Campos Elísios, em Paris, e também Joséphine Baker, uma excelente cantora e uma mulher que dançava primorosamente. Já a tinha visto no Olympia em "Paris, Mes Amours" – musical em que dançava um bailarino português muito interessante, chamado José Lobão – e depois vi o seu último espectáculo, "Joséphine", no Bobino, quando já tinha mais de 70 anos mas aparentava menos que 50, devido ao seu aprumo e intensidade artística. Sempre houve um apelo muito forte entre os artistas plásticos e o bailado. Temos, por exemplo, os desenhos de Isadora por Auguste Rodin e Bourdelle. Cito, mais uma vez, o Mestre Almada (um homem fascinante e multifacetado que, como se sabe até dançou "A Princesa dos Sapatos de Ferro") e que dizia: a arte é um meio, o homem a finalidade. Esta teoria/filosofia aplica-se, inclusivamente, a todo o tipo de espectáculo de comunicação. Quando, realmente, não é o Homem a finalidade, quando as formas expressivas e artísticas não são uma resposta às inquietações, às reflexões, à inteligência, e à sensibilidade humana, elas transformam-se em puros formalismos que não conduzem a nada e, por vezes, são altamente nocivos.


Exaltação do corpo
A dança é um desenho contínuo, um cruzamento de ritmos, uma acentuação de valores em que se vai do silêncio ao grito e que o primeiro é tão importante como o segundo. Isto é, o não-movimento é tão importante como o movimento. Esses movimentos exteriores são o resultado de movimentos interiores, pois tudo começa dentro de nós. Essa ânsia, esse desejo permanente, de decifrar o tal enigma do Universo é que vai criar todas as coreografias, todas as palavras, pois a dança já há muito que deixou de ser apenas movimento de corpo. O artista desenha porque não pode deixar de desenhar, o escritor escreve porque não pode deixar de escrever e o bailarino dança porque não pode deixar de dançar! Sou um apaixonado pelo movimento porque, em última análise, a dança é uma exaltação do corpo e que tem muito que ver com toda a história, com toda a aventura, da pintura e da escultura. Enquanto esta é o aprisionamento de uma atitude, a dança cria em permanência essa atitude. Com as novas tecnologias, designadamente o vídeo, a dança ganha uma intemporalidade que antes não tinha. O cinema e o vídeo dão-lhe uma eternidade que antes só era conseguida pelo registo fotográfico. Para termos uma noção real, honesta e honrada das Artes, temos que jogar sempre com uma dialéctica e um contraponto permanente entre o erudito e o popular. Estou a lembrar-me do folclore, não só em Portugal mas também noutros países, que é extraordinário, não só pela sua intensidade, mas pelo que transmite numa síntese de criatividade única e ausência do formalismo. Andamos numa permanente dança no "comércio" da vida - no "grande teatro do mundo", como diria Calderón de la Barca – e o que é importante é que os nossos gestos e atitudes funcionem com honestidade, sinceridade e interioridade. E, a finalizar, deixo um poema que tive o privilégio de inscrever no monumento funerário, que está no claustro dos Jerónimos, e que considero uma espécie de testamento artístico de Fernando Pessoa:





Conversa Gravada

Para falar do Diário Gráfico… não se devia falar, devia-se escrever. Empregar qualquer tipo de caligrafia. Mas vamos passar da palavra escrita, da palavra desenhada, à palavra oral. O Diário Gráfico é qualquer coisa que nós, na medida do possível, escrevemos todos os dias, sobre a realidade que nos cerca. É o risco inadiável em que o desenho é realmente prioritário, mas a palavra também aparece, porque tanto o desenho como a palavra escrita são caligrafias. O Diário Gráfico acontece, não deve ser uma obrigação, deve ser uma necessidade, deve ser qualquer coisa que faz parte da nossa própria existência. E acontece sempre, digamos, desde que o Homem existe. Quando se criam os primeiros passos de habitação, as grutas pré-históricas, nas suas paredes há desenhos, há sinais, há memórias, algumas feitas no próprio dia que aconteceram, uma caçada em que a luta não foi fácil, por exemplo. A presença de determinados acontecimentos registada da forma mais espontânea e com as técnicas mais elementares. É preciso dizer que a própria pintura pré-histórica é um Diário Gráfico. O suporte do desenho ou da pintura, de sinais, pois nessa altura ainda não se tinha inventado um alfabeto, nem tão pouco a imprensa, constituindo uma necessidade de registar, de “aprisionar”, aquilo que nos acontece e que nós consideramos mais importante e mais representativo. Já se sabe que sob o ponto de vista didáctico ou pedagógico, eu tive aquele privilégio de sugerir aos meus alunos de Desenho e aquela cadeira que eu criei depois da revolução dos cravos, do 25 de Abril – Comunicação Visual – aí sim, eu achei que era prioritário comunicar visualmente e fundamentalmente através da imagem o que cada um dos jovens achava que era mais importante, no decorrer da sua existência, no dia a dia. E assim aconteceram Diários Gráficos notáveis. Eu aconselhava que o Diário Gráfico devia ser registado num pequeno bloco, num pequeno caderno, que se pudesse trazer na algibeira para que num momento oportuno fosse possível registar através de desenho ou da escrita as tais memórias corporizadas. E assim acontece. Assim aconteceu. Tenho dois ou três Diários Gráficos de alguns alunos. Mas toda aquela geração que pela primeira vez esteve na Comunicação Visual respondeu a esta minha sugestão e realmente aconteceram coisas muito interessantes.
Falei na Pré-história mas posso lembrar-me que ainda quando eu era adolescente, falava-se muito nos Diários, mas de simples palavras. Diários mais ou menos secretos, e que tinham muito a ver com as aventuras ou desventuras sentimentais e inclusivamente com os acontecimentos múltiplos de que a vida é feita.
Tive um grande mestre de Diários Gráficos que foi um pintor-escultor e arquitecto. De manhã frequentava o seu atelier de pintura-escultura e à tarde ia para o atelier de arquitectura. Estou-me a referir ao homem notável, um dos grandes mestres da Arquitectura Moderna, o Le Corbusier. Nasce na Suiça, filho de um relojoeiro, apaixona-se pelo desenho, vai para Paris fazer um curso de Arquitectura, matricula-se, assiste às primeiras aulas e chega à conclusão que ali não ia aprender nada e resolve “dar a volta ao mundo”, e leva consigo os tais cadernos onde vai escrever o seu diário que tem o nome muito expressivo: “os Cadernos de Procura Paciente”. Se assistisse a esta conversa, Picasso diria: “Ó Corbusier, atenção, eu não procuro, encontro”. E o Diário Gráfico é realmente um encontro permanente. Eu citei aqui o Corbusier, mas muitos artistas, em várias épocas, em várias situações, mesmo o próprio Picasso tem Diários Gráficos notáveis e … muitos outros. É um fascínio. E é uma disciplina, porque qualquer manifestação, qualquer forma de expressão para atingir qualidade, exige um exercício disciplinado. Um grande violinista, um grande concertista, um pianista, tem que todos os dias tocar as escalas, tem que fazer uma série de exercícios. No caso das artes visuais é necessário que não esteja perfeitamente apto para representar não só a realidade exterior, mas também a realidade interior. Estou-me a lembrar dum Diário Gráfico, por exemplo, do Albert Durer, que tem mais diários escritos que desenhados. Estou a lembrar-me duma página fascinante que é a representação dum sonho. Ele acorda e escreve logo e aguarela esse sonho. É uma coisa deslumbrante. O Almada Negreiros nunca fez nenhum Diário Gráfico, no entanto, quando ele define o desenho como o nosso entendimento para fixar o instante, é o mesmo que o Diário Gráfico, que é também o fixar o instante. Porque nós estamos comandados por este correr por “este rio que corre” como diria a Marguerite Yourcenaur e os filósofos gregos pré-socráticos dizem “o Homem nunca se banha duas vezes na água do mesmo rio”, portanto a nossa consciência que estamos em permanente mutação, leva-nos a registar aquilo que é mais importante no nosso dia a dia. O que é importante no Diário Gráfico é que tem também um sentido criativo. Pela filosofia popular podemos dizer: “Quem conta um ponto acrescenta um ponto”, ou melhor como dizia o nosso António Aleixo: “A arte é um dom de quem cria, por isso não é artista aquele que só copia as coisas que tem à vista”. Portanto o Diário Gráfico acrescenta sempre alguma coisa aquilo que nós vemos, que é a nossa própria personalidade, a nossa própria experiência.
Com os alunos mostro-lhes vários exemplos, como o meu caderno que trago sempre comigo, e mostro-lhes com a maior simplicidade. Eles tanto podem desenhar este automóvel que está à nossa frente, como aqueles três caixotes do lixo, como podem fazer uma variante sobre aquele lettering ali, ou o grafitti, etc. O Diário gráfico é um registo do quotidiano que nós pretendemos tornar mais forte e que possam influenciar os outros. Devem “correr de mão em mão”. Deve ser um incentivo ao espírito de camaradagem e ao espírito de geração. Penso que isto também é fundamental e que se pode desenvolver através destes registos inadiáveis que se chamam Diários Gráficos.




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